Dia desses, ao chegar num condomínio urbano de Pelotas, fui supreendido por uma cena inusitada, ao menos para mim. Um jovem gaúcho sentado em um banco rústico, sorvia prazeirosamente um chimarão. Ele estava sólito, com olhar distante e típicamente trajado, como manda a indumentária do movimento tradicionalista. Ao seu lado, como uma espécie de altar, uma pequena estatueta de uma figura montada num cavalo branco.
A primeira vista parecia a imagem de São Jorge, mas achei estranho, respeitando a todas as crenças, um gaúcho pilchado venerar o santo guerreiro. Ao chegar mais perto e, como repórter que sou, perguntei ao guadério: “E aí tchê... com saudades do campo”. O gaúcho respondeu: “Pois é... moro aqui no condomínio mesmo, mas todo dia sento aqui com o meu Negrinho do Pastoreio, na esperança que ele me dovolva a querência que perdi”.
Todo gaúcho que se preza conhece a lenda do Negrinho do Pastoreio, muito contada nas rodas de prosa, principalmente nos rincões do Rio Grande do Sul, desde o final do século XIX, em especial por aqueles que defendiam o fim da escravidão. Na versão escrita pelo pelotense João Simões Lopes Neto, o protagonista é um menino negro e muito pequeno, escravo de um estancieiro muito mau; este menino não tinha padrinhos nem nome, sendo conhecido como Negrinho, e se dizia afilhado da Virgem Maria.
Diz a lenda que o Negrinho, após perder uma corrida e ser cruelmente punido pelo estancieiro, caiu no sono e perdeu o pastoreio. Ele foi castigado várias vezes, mesmo tendo achado o pastoreio. Mas muito cansado, caiu no sono novamente e perdeu o pastoreio pela segunda vez. Desta feita, além da surra, o estancieiro jogou o menino sobre um formigueiro, para que as formigas o comessem, e foi embora quando elas cobriram o seu corpo.
Três dias depois, o estancieiro foi até o formigueiro, e viu o Negrinho, em pé, com a pele lisa, e tirando as últimas formigas do seu corpo; em frente a ele estava a sua madrinha, a Virgem Maria, indicando que o Negrinho agora estava no céu. A partir de então, foram vistos vários pastoreios, tocados por um Neguinho, montado em um cavalo baio.
O Negrinho mais querido dos gaúchos é tratado com devoção, pois cada vez que se perde algo aqui nos pampas preces são dirigidas aos céus, ao Negrinho, a Virgem Maria e, quem ora pede também a Deus, assim nossos pedidos serão atendidos. “Que o Senhor devolva a todas as pessoas, a capacidade de orar e acreditar, que com fé, tudo pode ser concedido”.
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