sábado, 19 de janeiro de 2013

Do Zé da Roça para o Luis da Cidade

Algumas situações de exigências impostas aos agricultores inviabilizam a continuidade no campo. São fatos verdadeiramente ocorridos, inclusive de cobrança de multas, que poderiam ser cômicos se não fossem trágicos. A insensatez da legislação fica claro no texto fictício de Luciano Pizzatto, engenheiro florestal do IBDF-IBAMA.  Do qual faço uma readaptação, em duas partes, da carta escrita por um homem da roça a um antigo colega de escola da cidade.  Eis a mensagem:
“Prezado Luis, quanto tempo.
Eu sou o Zé, teu colega de ginásio noturno, que chegava atrasado, porque o transporte escolar do sítio sempre atrasava, lembra né? O Zé do sapato sujo? Tinha professor e colega que nunca entenderam que eu tinha de andar a pé mais de meia légua para pegar o caminhão e que por isso o sapato sujava. 
Se não lembrou ainda, eu te ajudo. Lembra do Zé da Roça... hehehe, era eu. Quando eu descia do caminhão de volta pra casa, já era onze e meia da noite, e com a caminhada até em casa, quando eu ia dormi já era mais de meia-noite. De madrugada o pai precisava de ajuda pra tirar leite das vacas. Você lembra, né Luis? 
Pois é. Estou pensando em mudar para viver aí na cidade que nem vocês. Não que seja ruím o sítio, aqui é bom. Muito mato, passarinho, ar puro... Só que acho que estou estragando muito a tua vida e a de teus amigos aí da cidade. To vendo todo mundo falar que nós da agricultura familiar estamos destruindo o meio ambiente. 
Veja só. O sítio de pai, que agora é meu (não te contei, ele morreu e tive que parar de estudar) fica só a uma hora de distância da cidade. Todos os matutos daqui já têm luz em casa, mas eu continuo sem ter porque não se pode fincar os postes por dentro de uma tal de APPA que criaram aqui na vizinhança. 
Minha água é de um poço que meu avô cavou há muitos anos, uma maravilha, mas um homem do governo veio aqui e falou que tenho que fazer uma outorga da água e pagar uma taxa de uso, porque a água vai se acabar. Se ele falou, deve ser verdade, né Luís?
Pra ajudar com as vacas de leite (o pai se foi, né ), contratei Juca, filho de um vizinho muito pobre aqui do lado. Carteira assinada, salário mínimo, tudo direitinho como o contador mandou. Ele morava aqui com nós num quarto dos fundos de casa. Comia com a gente, que nem da família. Mas vieram umas pessoas aqui, do sindicato e da Delegacia do Trabalho, elas falaram que se o Juca fosse tirar leite das vacas às 5 horas tinha que receber hora extra noturna, e que não podia trabalhar nem sábado nem domingo, mas as vacas daqui não sabem os dias da semana, aí não param de fazer leite. Ô, os bichos aí da cidade sabem se guiar pelo calendário?

Disseram ainda que a comida que a gente fazia e comia juntos tinha que fazer parte do salário dele. Bom Luís, tive que pedir ao Juca pra voltar pra casa, desempregado, mas muito bem protegido pelos sindicatos, pelos fiscais e pelas leis. Mas eu acho que não deu muito certo. Semana passada me disseram que ele foi preso na cidade porque botou um chocolate no bolso no supermercado. Levaram ele pra delegacia, bateram nele e não apareceu nem sindicato nem fiscal do trabalho para acudi-lo”.
Depois que o Juca saiu, eu e Marina (lembra dela, né? Casei) tiramos o leite às 5 e meia, aí eu  levo o leite de carroça até a beira da estrada, onde o carro da cooperativa pega todo dia, isso se não chover. Se chover, perco o leite e dou aos porcos, ou melhor, eu dava, hoje eu jogo fora.
Os porcos eu não tenho mais, pois veio outro homem e disse que a distância do chiqueiro para o riacho não podia ser só 20 metros. Disse que eu tinha que derrubar tudo e só fazer chiqueiro depois dos 30 metros de distância do rio, e ainda tinha que fazer umas coisas pra proteger o rio, um tal de digestor. Achei que ele tava certo e disse que ia fazer, mas só que eu sozinho ia demorar uns trinta dia pra fazer, mesmo assim ele ainda me multou, e pra poder pagar eu tive que vender os porcos, as madeiras e as telhas do chiqueiro, fiquei só com as vacas. O promotor disse que desta vez, por esse crime, ele não vai mandar me prender, mas me obrigou a dar 6 cestas básicas pro orfanato da cidade. Ô Luís, aí quando vocês sujam o rio também pagam multa grande, né? 
 Agora pela água do meu poço eu até posso pagar, mas tô preocupado com a água do rio. Aqui agora o rio todo deve ser como o rio da capital, todo protegido, com mata ciliar dos dois lados. As vacas agora não podem chegar no rio pra não sujar, nem fazer erosão. Tudo vai ficar limpinho como os rios aí da capital.
Mas não é o povo da cidade que suja o rio, né Luís? Quem será? Aqui no mato agora quem sujar tem multa grande, e dá até prisão. Cortar árvore então, Nossa Senhora! Tinha uma árvore grande ao lado de casa que murchou e tava morrendo, então resolvi derrubá-la para aproveitar a madeira antes dela cair por cima da casa.
Fui no escritório daqui pedir autorização, como não tinha ninguém, fui no Ibama da capital, preenchi uns papéis e voltei para esperar o fiscal vir fazer um laudo, para ver se depois podia autorizar. Passaram 8 meses e ninguém apareceu pra fazer o tal laudo, aí eu vi que o pau ia cair em cima da casa e derrubei. Pronto! No outro dia chegou o fiscal e me multou. Já recebi uma intimação do Promotor porque virei criminoso reincidente. Primeiro foram os porcos, e agora foi o pau. Acho que desta vez vou ficar preso.
Tô preocupado, Luís, pois no rádio deu que a nova lei vai dá multa de 500 a 20 mil reais por hectare e por dia. Calculei que se eu for multado eu perco o sítio numa semana. Então é melhor vender e ir morar onde todo mundo cuida da ecologia. Vou para a cidade, aí tem luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não quero fazer nada errado, só falei dessas coisas porque tenho certeza que a lei é pra todos.
 Eu vou morar aí com vocês, Luís. Mas fique tranquilo, vou usar o dinheiro da venda do sítio primeiro pra comprar essa tal de geladeira. Aqui no sitio eu tenho que pegar tudo na roça. Primeiro a gente planta, cultiva, limpa e só depois colhe pra levar pra casa. Aí é bom que vocês é só abrir a geladeira que tem tudo. Nem dá trabalho, nem plantar, nem cuidar de galinha, nem porco, nem vaca, é só abrir a geladeira que a comida tá lá, prontinha, fresquinha, sem precisá de nós, os criminosos aqui da roça. 
Até mais Luís. 
Ah, desculpe, Luís, não pude mandar a carta com papel reciclado, pois não existe por aqui, mas me aguarde até eu vender o sítio”. 

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Arte das sombras

Bem diferente do que possa parecer, arte das sombras não são atividades sombrias na calada da noite realizadas por artistas do mal. É na verdade a criação de imagens resultantes do diálogo da luz com objetos ou indivíduos para criar siluetas, por vezes inusitadas, em uma superfície plana e clara. Os resultados são incríveis e mesmo sem saber do que se tratava experimentei a expressão artística ainda quando criança.
Era uma manhã fria e ensolarada da minha infância. Eu e meus três irmãos, na época, acordávamos para admirar as sombras refletidas no teto do quarto de nossa humilde casa. Os primeiros raios de sol da manhã projetavam imagens de objetos e dos animais de criação que passavam na frente do sol. Os feixes de luz entravam por frestas e buracos do nó da madeira, formando siluetas, ora paradas, ora em movimento: Galinha com pintinhos, cão vira-lata e até um gato aparecia de vez em quando. Lembro que isso nos alegrava muito.
Logo percebi que poderíamos melhorar nossas opções de brinquedo com aquela situação de sombras que geravam risos, logo pela manhã. Cheio de coragem pulei do quentinho das cobertas e fui para a rua, na frente da luz pulava e fazia todo tipo de movimento. Dentro da casa, deitados e tapados com cobertores, meus irmãos apreciavam e divertiam-se com minhas palhaçadas. Eram momentos felizes de um tempo que não tínhamos televisão, nem imagens em alta definição.
Mais tarde descobri a semelhança do que fazíamos na infância com o teatro de sombras, arte muito antiga originária da China. Segundo a enciclopédia livre, Wikipédia, no ano de 121, o imperador Wu’Ti da dinastia Han, desesperado com a morte de sua bailarina favorita, teria ordenado ao mago da corte que a trouxesse de volta ao "Reino das Sombras". O mago usou a sua imaginação e, com uma pele de peixe macia e transparente, confeccionou a silhueta de uma bailarina. Depois, ordenou que, no jardim do palácio, fosse armada uma cortina branca contra a luz do sol, de modo que deixasse transparecer a luz.
A cultura se espalhou para o mundo, sendo atualmente praticada regularmente por grupos de mais de 20 países. A arte com sombras é comum entre os artistas, os quais fazem uso de sucata para criar peças inovadoras e originais, além de fazer nascer arte de onde muitos acreditavam que nada sairia.